. Gênero: Seinen, slice of life, ficção científica, drama.
. Editora original: Shogakukan
O absurdo como paisagem
O primeiro volume de Dead Dead Demon’s Dededede Destruction abre com um paradoxo inquietante: o mundo está acabando — mas ninguém parece realmente se importar. A narrativa se passa três anos após o surgimento de uma nave alienígena colossal pairando sobre Tóquio. A cena remete de imediato a obras como Independence Day ou Watchmen, mas ao invés de explosões e resistência heroica, somos lançados para dentro da vida de Kadode Koyama, uma colegial comum e de sua excêntrica melhor amiga, Ouran Nakagawa (Ontan).
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É essa transição - do catastrófico para o cotidiano - que orienta todo o trabalho, e já está totalmente desenvolvido desde o começo. A atmosfera é de ironia existencial: a metrópole está militarizada, com áreas de conflito e desmoronamento de estruturas, contudo, os adultos seguem para o trabalho e os jovens se dedicam a exames, jogos, redes sociais e paixões na escola.
Kadode é uma jovem reservada, cética e uma observadora do mundo - não por conhecimento, mas por paralisia. Ela venera um docente (Mr. Watarase) e explora as obras de um autor de mangá conspirativo conhecido como Isobeyan, uma espécie de Doraemon alternativo e amargo. A maneira como ela interage com a realidade é influenciada por essas figuras - ela reconhece que o mundo é disfuncional, mas não tem ideia de como lidar com isso.
Por outro lado, Ontan representa a energia caótica do mangá. Com um comportamento histérico e aparência infantil, ela atua como um refúgio contra o tédio e a decepção que permeiam o mundo. A sua personalidade performática é simultaneamente divertida e inquietante. Ela não apenas se comporta como se o fim do mundo fosse uma brincadeira - ela acredita piamente nisso. E talvez esteja enganada.
O mangá se baseia nesse contraste entre as duas amigas como o centro. A amizade delas é uma fortaleza inacreditável construída contra um mundo sem propósito. No entanto, desde já, Inio Asano começa a perfurar essa superfície com indícios sutis de que o mundo está à beira de cobrar um preço por essa alienação.
A existência da nave alienígena é uma representação clara e quase irônica da interferência do Governo e da mídia na vida dos indivíduos. O Governo incentiva ações militares questionáveis, censura informações, propaganda contínua e um culto ao "nacionalismo pragmático". No entanto, a maior parte da população continua negando, acomodando-se como se tudo fizesse parte de uma rotina desconfortável, porém habitual.
Esta apatia coletiva é intensificada por uma mídia que converte até o apocalipse em diversão - algo que ressoa fortemente na nossa realidade atual de crises banalizadas por timelines e hashtags.
O volume 1, em termos gráficos, já evidencia a habilidade técnica de Asano no seu ápice. Ele mescla o hiper-realismo dos cenários urbanos (criados através de fotografias digitalizadas) com personagens caricatos, intensificando a percepção de desencontro entre o mundo e o indivíduo.
O ritmo é devagar, contemplativo, repleto de cenas onde nada "importante" ocorre - e é precisamente esse o destaque. A falta de ação intensifica o fardo de uma vida estagnada. O absurdo não explode: ele se desenvolve lentamente.
O ponto mais marcante do volume acontece quando Kadode e Ontan aceitam uma carona com dois rapazes mais velhos e são conduzidas a um passeio aleatório, que termina com uma conduta intrusiva e assédio sexual. A cena é perturbadora e clara, evidenciando que, mesmo com a fantasia sci-fi ao redor, o verdadeiro horror ainda reside na rotina do machismo e da violência diária.
Kadode escapa sem ferimentos, porém emocionalmente afetada, enquanto Ontan ri da situação. Trata-se de um contraste abrupto e verossímil: a incapacidade de lidar com o trauma se oculta atrás da fachada da indiferença. Neste ponto, Asano deixa evidente que o mangá não se limitará a um relato de vida com cenário bizarro, mas sim uma análise aprofundada das fraturas psicológicas de uma geração inteira.
Dead Dead Demon’s Dededede Destruction é um capítulo denso, perturbador e provocativo em uma obra que se recusa a fornecer respostas simples. O questionamento do conformismo social, o niilismo entre os jovens, a política da desinformação e o vazio existencial são abordados com inteligência e empatia.
Ao inverter a importância de uma invasão alienígena, tornando-a um pano de fundo e não o foco principal, Asano nos faz encarar o verdadeiro colapso: o das interações humanas, da empatia e da esperança. E nos recorda que, possivelmente, o "fim do mundo" já tenha ocorrido. No entanto, continuamos a viver nele como se fosse algo comum.
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